Desatadora

O intragável se encontra do lado de fora do corpo. Assim, do lado de fora, ele é impassível de incorporação e o que não é incorporado não faz parte do conjunto. Assim são certos tópicos – foragidos. Corpos que não conseguem ser assimilados ao serem rejeitados pela força do assimilador. Corpos que não pertencem. O outro, o naturalmente ou fundamentalmente diferente, definido por políticas de dominação que privilegiam um corpo em detrimento de outro é um exemplo disso. O trabalho de Luiza Prado não aceita processos de intragabilização de corpos, vozes e conhecimentos populares. Ela os traz à mesa. Para serem comidos.

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Comer não é estranho às artes. Muitos artistas são ótimos cozinheiros, e mais do que isso, são mestres na arte do social. E nada mais social do que o momento da refeição. Aliás, muitos trabalhos de arte começam a ebulir durante um café, um almoço ou jantar, e é simplesmente natural que alguns deles não só entendam esse momento de cozimento de uma idéia como parte do processo, mas que esse processo seja o próprio trabalho. A refeição vira o trabalho, o momento é engolido e nada mais físico do que um corpo que digeri. Difícil não pensar em Rikrit Tiravanija servindo comida thailandesa em galerias de Nova Iorque nos anos 90, ou Ei Arakawa na feira de artes Frieze em Londres servindo uma sopa feita por sua mãe a partir de vegetais crescidos na região de Fukuhima após o desastre nuclear, ou os jantares de Amilcar Packer, onde o artista usa o momento do preparo da refeição para conversar sobre colonização por meio da cozinha crioula. A lista de homens na cozinha da arte é grande e quanto mais penso nisso mais me incomodo, me enjoa tentar entender os porques. Mas essa indigestão é facilmente resolvida ao redirecionar o foco da questão para trabalhos como o da artista Luiza Prado. Em Janeiro deste ano, ela tomou conta da cozinha do espaço de arte contemporânea SAVVY em Berlim, e preparou um jantar sobre e para o corpo reprodutor feminino, ao qual eu tive a honra de ajudar na cozinha.

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O trabalho de Luiza, The Weeds Became Long Graceful Grasses é uma performance. Durante o jantar, Luiza conta a estória de Julia e Julieta escrita em fitas presas ao seu próprio corpo que se desprendem ao desenrolar da estória. Ela se passa em um jardim que era Terra dos Tamoios, que virou império português, que se tornou Rio de Janeiro, Brasil, onde um museu nacional foi construído e que em 2018 foi destruído por um incêndio. A complexa e violenta história desse lugar traça uma linha do tempo complicada que envolve colonialismo e produção de diversos tipos de conhecimento. Na estória de Luiza, o passado e presente desse espaço se entrelaçam à história de Julia e Julieta que percebem que seus corpos fazem parte dessas mesmas histórias. As personagens trocam cuidados ao corpo uma da outra por meio de conhecimentos antigos passados por outras gerações e outros corpos que também aconteceram nesse cenário conturbado. É essa generosidade no cuidado e no passar de conhecimento adquirido por uma sucessão de corpos ao longo da história que Luiza traz ao público ao preparar um jantar em Janeiro de 2019, em Berlim: 

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Entrada 

Dadinhos de tapioca com coco defumados em artemísia, servido com melaço de romã.

Prato Principal 

Arroz com salsinha e romã; moqueca baiana com banana-da-terra e coco; farofa de castanha de caju.

Sobremesa 

Goiabada com canela.

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O jantar foi feito a partir de ingredientes que Luiza diz possuírem ‘uma vida dupla’. Além de serem usados normalmente como ingredientes na cozinha, são também utilizados em forma de infusão de chá como métodos anticoncepcionais e de aborto. O jantar de Luiza é seguro, como ela deixa claro ao servi-lo. Os pratos não têm como objetivo provocar qualquer efeito contrário à mulheres grávidas ou que estão planejando engravidar. O objetivo do jantar é principalmente o que qualquer momento da refeição provoca: o de começar uma conversa, um momento de trocar experiências enquanto o foco está no fazer do nosso corpo. 

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Conheci a Luiza por volta de oito anos atrás quando fui convidado para um jantar em sua casa logo na primeira noite em que me mudei para a Alemanha. Desde então fui testemunha de jantares incríveis que ainda ressoam na memória do meu corpo. Durante a maior parte desse tempo em que nos conhecemos, Luiza escreveu uma tese de doutorado: Technoecologies of Birth Control: Biopolitics by Design. Na tese, que pode ser acessada na íntegra em seu site pessoal, Luiza analisa a partir de perspectivas decoloniais e feministas, o modo como a manutenção e controle de corpos acontece a partir de regimes de dominação biopolíticos. E o faz principalmente a partir do estudo histórico, geopolítico e socio cultural das technoecologias de controle de natalidade. O resultado, entre outros textos, performances e instalações nos últimos anos, estava no jantar servido em Berlim.

Ingredientes para o jantar no SAVVY Contemporary. Photo: Lucas Odahara

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Ao corpo que não pertence 

Luiza Prado

por Lucas Odahara. Abril 2019 

 A refeição vira o trabalho, o momento é engolido e nada mais físico do que um corpo que digeri.

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The Weeds Became Long Graceful Grasses, 2019 - Luiza Prado. SAVVY Contemporary, Berlim. Photo: Raisa Galofre

Recentemente, ouvi que é comum escritores serem ótimos cozinheiros, já que o preparo de uma refeição oferece um resultado relativamente rápido em relação ao processo de escrever um livro. Isso definitivamente se aplica aos dons culinários de Luiza. Mas ao contrário de escritores em busca de um escape literário, a escrita de Luiza, assim como a sua culinária é sobre o corpo. E eles convergem. Se incorporam. No trabalho dela já não é possível mais saber o que alimenta o que, já que todo o conhecimento é sobre, para e proveniente do corpo. A estória das plantas e receitas caseiras que provocam o aborto em países onde o aborto é ilegal, faz parte da pesquisa de Luiza, que está interessada nessas informações preciosas passadas de geração em geração entre mulheres no Brasil e em países ao redor do mundo. O que Luiza cozinha é um assunto que deve ser colocado à mesa: a quem pertence o corpo, o que é a sua medicação e o que significa cuidar dele, colocando o foco sobre o tipo de conhecimento que ultrapassa àquele que vem de uma lei do congresso ou de um livro que define a legalidade de um saber. Luiza prepara o seu trabalho a partir de conhecimentos populares que persistem em existir de corpo em corpo, conhecimento engolido, digerido, que conhece as dimensões poéticas que a medicina herbal tem enraizada na nossa história. 

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No trabalho de Luiza, a palavra incorporação é levada ao seu extremo. Certos assuntos, silenciados da vida pública, intragados e relegados à ilegalidade podem não existir no papel mas persistem em corpos que falam, rejeitam, lutam e comem. O engolir vira então um ato de resistência, de domínio do próprio corpo e história. E parece que para esses assuntos, palavras não são suficientes, e Luiza os oferece ao público assim como eles existem. Como comida, goela abaixo.  

 

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